Desabafo

Por Félix Valois
Minha psicóloga clínica, doutora Carla Duarte, insiste em que devo continuar a escrever. É uma terapia, afirma ela, com ótimos efeitos no tratamento da ansiedade pós covid. Como estou necessitado, e muito, de que esses efeitos se manifestem em mim, sigo-lhe a recomendação e vou por aqui, com inspiração oscilante, compondo estas mal traçadas linhas com que, há mais de uma década, contribuo no Diário do Amazonas.

Na semana passada, falei da alegria de ver minha netinha de cinco anos se apresentando no palco do Teatro Amazonas. Mudo radicalmente de assunto e vejo estampada no jornal O Globo a história do garoto Gabriel Silva, de doze anos. Nenhuma alegria. Tragédia pura. Em busca de comida, a criança foi se misturar aos urubus e à imundície no lixão de Piçarreira, no estado do Maranhão. Triste imagem de um país em que a infância, ao invés de frequentar escolas, tem que ajudar na sobrevivência da família, mesmo que numa atividade absolutamente desumana. O mesmo jornal informa: “De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), de 2020 para 2021, o número de brasileiros que vivem na pobreza quase triplicou”. Sabendo-se que, desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso, os governos, nos três níveis de administração, se vêm dedicando a programas de distribuição de renda, fica difícil de entender o fenômeno.
Pessoalmente, e por puro instinto, jamais compactuei com as “bolsas” que, com variada adjetivação, se têm multiplicado ao longo do tempo. Nada me parece mais paternalista e demagógico, cabendo a invocação da velha história de que melhor é ensinar o homem a pescar do que lhe dar um peixe de esmola. Que de esmola se trata, sejam quais forem as teorias que pensadores, mais ou menos descansados, inventem para terçar argumentos retóricos e supostamente eruditos no plano socioeconômico.
Vem-me à lembrança a dura afirmativa de Émile Zola, no Germinal. Levando uma vida miserável nas minas de carvão, Maheu, mineiro que se vê na abominável contingência de não ter um pedaço de pão para pôr na mesa da família, chega a desejar a morte e assim reflete: “Os mortos não sentem fome”.
Mas como pretender que o nosso Gabriel, o infante brasileiro, se dê a tais elucubrações filosóficas? Ele não está morto e apenas tem fome. Apenas? Ora, apenas. Ele sente fome e essa realidade não pode ser obscurecida por “bolsas” ou “auxílios”, que, se em termos imediatos, mitigam prementes necessidades, a longo prazo se transformam em vício irreprimível.
Não posso fugir às minhas origens e à minha formação. Afinal de contas não é à toa que muitos de meus amigos me chamam de “velho comunista”. O regime capitalista, com o seu deus “mercado”, é o grande responsável por essa gritante desigualdade social, em que um por cento da população vive nababescamente, entre iates e champanhes, enquanto a massa ignara de miseráveis chafurda nos lixões e nas periferias das grandes cidades.
Onde deveria estar o nosso herói Gabriel? A resposta, acho que independentemente de qualquer credo político, só pode ser uma: na escola. Acontece que o nosso país jamais conseguiu ter uma política de estado para a educação. Muito ao contrário, a sucessão de governos mostra que cada um elabora um plano contingencial, de curtíssimo prazo, que, quando muito, pode ter efeitos superficiais. Mas o âmago da questão, a necessidade de colocar a educação como prioridade zero, este nunca é enfrentado e o ensino público vai sempre de mal a pior.
No lixão, Gabriel encontrou uma árvore de natal. Sorriu, ficou feliz. E o oportunismo já levou à feitura de cotas para ajudar a família nas festas que se aproximam. É o Papai Noel da irresponsabilidade e da hipocrisia. Vai-se amainar a fome de uns poucos, sem perceber que a morte desejada por Maheu estará sempre a rondar os miseráveis casebres de quantos brasileiros não conseguem quebrar os grilhões do capitalismo avassalador.
Desabafei. Tanto me basta.
 
*Advogado