Por Carlos Santiago*
Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo (sic)”, diz a crônica da escritora Clarice Lispector. Quando li esse parágrafo não entendi, fiquei analisando o sentido, o simbolismo, os aspectos sintáticos e semânticos. A compreensão era complexa. Formulei algumas hipóteses, tentei fazer uma relação tanto com textos dela como com os de outros autores, mas na minha mente sempre a mesma imagem: Clarice um enigma, Clarice um espectro. Na minha concepção, vida e literatura formam uma única estrutura, uma relação simbiótica na qual uma é a seiva da outra.
Reiniciei minha leitura, mas não de forma abrupta. Foi um recomeço lento, gradual, aproveitando as paisagens do caminho, parando aqui e ali para descansar e refletir. Questionando muitas vezes qual a relação entre o título da crônica “DIES IRAE” e o texto escrito. Pausei a leitura e fui pesquisar o que era Dies Irae. Encontrei. Dia da ira, era um antigo hino latino do século XIII, cuja autoria é dada a Tomás de Celano, biógrafo de São Francisco de Assis. A letra conta que no dia do Juízo Final, os justos serão salvos e os pecadores enviados ao inferno. Clarice está irada, mas seus escritos não se reportam a fatos metafísicos ou bíblicos, sua cólera é contra os fatos mundanos.
Caminhemos com Clarice: o amor em vez de dar, exige; mentir dá remorso, mas não mentir é um dom que não merecemos; morremos e vivemos sem explicação; não soubemos fazer um mundo onde viver, e não sabemos na nossa paralisia como viver. Essa contraposição de ideias e sentimentos tirou-me o fôlego e transportou-me para o seio de um redemoinho de incertezas. A sinestesia das palavras e imagens me fez ir de uma semiparalisia para uma imobilização completa e silenciosa. Há uma radicalidade na compreensão e na experiência de contemplação do mundo. A fascinação e o paradoxismo da realidade demonstram uma inteligibilidade quase insuportável, na qual não há um porto seguro. Deveras, quando estamos irados, há uma diluição das certezas, se é que elas existem.
Como todos nós, o eu clariciano vive um turbilhão de emoções e perspectivas, encontra-se perdido, buscando um ponto de apoio entre o divino e o real. Nessa hora, a incerteza pregada no texto também me invade. Solto o livro, contemplo o horizonte e fico pensando se a cólera e a tristeza da personagem são sentimentos da chamada pós-modernidade. Repito em silêncio: tudo que é sólido se desmancha no ar. Outras questões me invadem: quem sou eu? O que procuro? Por que sinto um vazio, solidão?
Sentindo-me extensão de Clarice, sorrio e tento imaginar se todas as pessoas não são uma espécie de pêndulo entre Perto do Coração Selvagem e a Hora da estrela. Desisto, seria muita pretensão.
Indago-me se há uma ponte entre os escritos de Clarice Lispector e a teoria de Zigmunt Balman sobre a sociedade líquida. Penso na palavra “crise”. Naquela temos as crises intersubjetivas e de identidade, a conexão de opositores: eu/outro, civilização/natureza, linguagem/silêncio, certeza/incerteza, divino/real, amor/ódio. Neste, há uma crise das ideologias, dos partidos, da razão, do conceito de comunidade. A liquidez dessas “certezas” faz emergir um sujeito individualista e consumista desenfreado. Parei. Tentei imaginar Clarice Lispector no País da Liquidez, um livro que talvez pudesse…
Não consegui terminar o pensamento, pois, alguém me informava que um governante dizia não haver fome no Brasil; que a devastação da Amazônia é uma grande mentira e que tinha planos de mandar o seu filho fritador de hambúrguer para ser diplomata nos Estados Unidos da América – EUA. Senti a cólera e a tristeza invadirem o meu corpo, mas não me senti semiparalítico ou paralítico, embora esteja desejando que a ira de Deus (ou dos homens) consuma a todos.
*O autor é sociólogo, analista político e advogado.
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