“Seo” Sandoval

Por Ronaldo Derzy Amazonas*

Raymundo Sandoval Amazonas era o nome completo do meu pai, assim com Y, que ele fazia questão de corrigir caso grafassem errado. Se vivo, “Seo” Sandoval como era mais conhecido, estaria completando 95 anos neste 30 de agosto passado, daí, esse meu artigo, vem no sentido de homenagear um homem marcante na minha e na vida de toda nossa família.

O sobrenome Amazonas não é de raiz porquanto foi anotado pelo cartório após uma prosaica porém comum atitude à época quando um pai preferia registrar um filho no interior do estado para esconder  algum fato que pudesse causar embaraços à sua família original. Nós, os filhos do “Seo” Sandoval, temos muito orgulho desse sobrenome e do DNA que ostentamos!

Meu pai era um homem baixinho com um pouco mais de 1,50 metros, bigode bem aparado, barba espessa, franzino, cabelos negros e fartos penteados sob a ação da indefectível brilhantina.Era muito vaidoso no trajar pois, do sapato ao cinto de couro, passando pela roupa, a camiseta alvíssima por debaixo da camisa, o lenço e o pente feito de osso que levava ao bolso, tudo tinha que combinar e, quem passava tudo ao ferro de engomar, era minha mãe D. Lélia.

Eu admirava ver meu pai de gravata borboleta e terno preto impecavelmente engomado quando, às segundas feiras à noite, saía para a reunião da Maçonaria e dali esticava a noite para jogar sueca(um tipo de jogo de cartas) com amigos e amigas.

De uma cultura geral muito além da sua formação escolar posto que mal completara o segundo grau, meu amado pai falava e escrevia um português perfeito e nos corrigia sempre que pronunciávamos alguma palavra de maneira errada. Apesar dos defeitos, meu pai era um homem virtuoso, de uma voz grave que quantas e quantas vezes ouvi cantar suas canções preferidas de intérpretes como Nelson Caldas, Ataulfo Alves, Nelson Gonçalves, Francisco Alves, entre outros ao se barbear ante o espelho ou no banheiro.

O estudo dos filhos era tudo pra ele pois incentivava e se sacrificava no trabalho nos dias úteis e finais de semana fazendo bicos a fim de nos proporcionar conforto, alimentação e educação de modo completo.

Eletricista de profissão e “engenheiro” diletante por opção, “Seo”Sandoval era um homem irrequieto, detalhista, perfeccionista, caprichoso e exigente com tudo o que realizava e com todos com quem atuava e, por conta disso, poucos gostavam de trabalhar com ele porém, quem com ele labutava, o fazia exatamente por conta do jeito correto e caprichoso com que cumpria sua profissão pois a esses ensinava todos os detalhes do seu mister.

Para o meu pai não tinha tempo ruim pois trabalhava sob sol e chuva e não recusava serviço e, sendo asmático e fumante, muito do que enfrentou de doenças respiratórias que o levaram à morte, foi por conta da batalha que travou para sustentar a família dando-lhe conforto, alimento e educação.

Trabalhei muito com meu pai nos finais de semana quando fazia bicos de eletricista e com ele aprendi e sei até hoje todos os passos de uma instalação elétrica predial e, como ele, faço tudo igualmente com detalhes; parte das ferramentas que meu pai usava eu as tenho guardadas até hoje e as uso com prazer, saudade e, em sua digna memória e porque gosto, ainda hoje realizo alguns “serviços” elétricos domésticos para amigos e parentes.

Respeitado pelos filhos e pela fiel esposa, minha mãe, com quem teve onze filhos, “Seo” Sandoval além de vaidoso era namorador contumaz e, por conta desse seu lado fugidio, teve outros relacionamentos dos quais nasceram outros filhos igualmente cuidados e sustentados pelo seu sacrificante e honrado trabalho. Em quantas e quantas ocasiões minha mãe às vezes barriguda empreendia uma verdadeira “caçada” ao baixinho e o flagrava com outra.

A maior, mais densa e mais marcante herança que meu pai nos deixou e é reconhecida pelos seus amigos, parentes e por cada um dos seus filhos, é a honestidade que ensinava e transmitia dia a dia seja numa prosaica transação comercial, na quitação de um compromisso, na cobrança por um serviço ou nas relações profissionais as quais travava.

Nacionalino e botafoguense, a paixão era tanta que, junto com um grupo de amigos, ergueram no bairro da Cachoeirinha uma sede social com o nome do clube carioca para onde levava os filhos para diversão e aos bailes de carnaval.

Deu-se ao prazer de erguer a cada aniversário de quinze anos das minhas irmãs uma casa nova no mesmo terreno. Enquanto morávamos numa casa nova nos fundos ele já estava pensando e iniciando a construção de uma nova morada na parte da frente do terreno situado no velho e saudoso Beco Arthur Virgílio casa número 46 ali entre as ruas Borba e Parintins na Cachoeirinha.

Papai tinha verdadeira paixão pelos netos e adorava crianças que igualmente correspondiam ao seu amor. Minha filha Thalita quando o visitava em Fortaleza, lugar da sua última morada, era só contentamento e alegria de ambas as partes porquanto papai, para cada criança, adotava um apelido ou modo carinhoso de chamar e acarinhar.

“Seo” Sandoval era cheio de manias e detestava certas situações como por exemplo: não gostava de quem empinava papagaio e nem permitia a prática no beco onde morávamos inclusive com a anuência dos vizinhos já que sendo eletricista da antiga Companhia de Eletricidade de Manaus-CEM era ele quem haveria de consertar os estragos deixados pelos amantes da prática; tratava todos os amigos como “meu camarada”; se pegava um táxi, por conhecer como a palma da mão todas as ruas, avenidas e bibocas de Manaus, fazia questão de traçar o itinerário e ai do motorista que saísse da rota; realizou, com ajuda dos vizinhos, toda a rede, as derivações e a iluminação elétrica e a toda a rede de esgotos e de água da rua onde morávamos; não permitia que fizessem serviço mal feito que ele chamava de “serviço de carregação” e os mandava desmanchar e refazer na hora; adorava um gibi de faroeste tipo Buffalo Bil, Rocky Lane e Buck Jones e romances em formato de livro de bolso os quais permitia depois aos filhos que lessem tanto herdei do meu pai o gosto e até hoje leio gibis do Tex Willer; papai amava ir num domingo, quando podia, ao balneário do Parque Dez para onde levava toda a família para puros momentos de lazer e diversão.

Por essas e por tantas outras passagens, a memória do meu pai daria um belo livro e traço essas poucas linhas como forma de lhe render essa singela porém oportuna e loquaz homenagem.

Descanse em paz meu amado pai e saiba que, onde estiveres ao lado do Grande Arquiteto do Universo (como ele denominava Deus na linguagem maçônica), seus filhos honrarão sua viva memória posto que de ti herdamos as virtudes, qualidades e a sabedoria de um grande homem e aprendemos igualmente também com teus erros a não repeti-los.

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*O autor é farmacêutico bioquímico e diretor-presidente da Fundação Hospital Alfredo da Matta