Ao definir “fundamentalismo”, Houaiss diz que se trata de “movimento religioso e conservador, nascido entre os protestantes dos E.U.A. no início do século XX, que enfatiza a interpretação literal da Bíblia como fundamental à vida e à doutrina cristãs”, esclarecendo que, “por extensão de sentido”, o termo hoje se aplica a “qualquer corrente, movimento ou atitude, de cunho conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos; integrismo”. É, digo eu, a tolice dicionarizada e institucionalizada, na medida em que todo fundamentalista se pretende dono absoluto da verdade e, por via de consequência, não pode admitir a discussão dialética sobre os pontos em que assentam suas crenças e princípios.
Nada mais obscurantista e retrógrado. Se o termo tem datação do século passado, não quer isso dizer que o pensamento nele ínsito tenha sido desconhecido de épocas anteriores. Muito pelo contrário. Um simples voo de pássaro sobre a história das religiões mostra que ela está cheia fundamentalismos, como é possível detectar, só à guisa de exemplo, na Inquisição instituída e sustentada pela Igreja Católica por mais de quatro séculos. A intolerância era a marca e a simples suspeita de heresia era suficiente para levar à fogueira homens, mulheres e crianças.
Em razão das condições socioeconômicas e políticas da época, esse tipo de concepção se introduziu mesmo nas legislações dos países, como é o caso de Portugal, cujas famosas Ordenações, principalmente o livro V das Ordenações Manuelinas, são uma mistura de direito penal e catecismo, mas de um catecismo odioso e impiedoso, em que as penas cruéis são estabelecidas à farta.
E o que dizer da Revolução Francesa? Se representou um movimento burguês de liberação contra as rígidas regras do feudalismo e daquela mesma intolerância religiosa, descambou, ela própria, para um fundamentalismo incompreensível, bastando recordar o ano do Terror, em que a guilhotina foi empregada a mancheias, deixando marcas indeléveis de sangue no solo e na civilização de França. É que, perdido o senso da realidade, quem não se amoldava à nova ordem era necessariamente inimigo e tinha que sofrer os efeitos da repressão mais insensata. Algo como, guardadas as devidas proporções, aconteceu no Brasil pós 64, onde quem não rezava pela cartilha dos militares era execrado, humilhado e torturado, chegando-se ao ponto de reinstituir a pena de morte, a qual, se nunca foi oficialmente aplicada, não deixou de sê-lo nos porões da ditadura.
Teoricamente foi superado o período da Guerra Fria, com a bipolarização do mundo. Mas foi era de brutais radicalizações recíprocas, destacando-se, de um lado, a construção do muro de Berlim e, de outro, a implacável perseguição à República de Cuba, com um embargo insano que se estendeu por mais de meio século. E há quem me venha dizer que, com o término do tal embargo, Cuba “restaurará as práticas democráticas”. Ensinadas por quem? Ora, por quem impôs o embargo, já que, nessa visão fundamentalista, nada mais democrático do que estabelecer um clima permanente de conflito e medo pelo só fato de os regimes políticos serem diferentes.
Extinta a oposição maniqueísta entre as duas ideologias de então, o eixo do problema parece ter sofrido deslocamento, ressurgindo na forma de uma guerra religiosa que se julgava inviável e impossível. O conflito entre judeus e árabes é a feição mais evidente desse novo quadro. Seria ingênuo acreditar que os interesses econômicos não estão presentes na pendenga. Mas a maneira como esses interesses se manifestam vem enroupada de uma intolerância religiosa, assim como se Jeová e Alá fossem inimigos inconciliáveis e cada um a seu modo estivesse disposto a lutar por uma hegemonia, qual aquela com que sonhou o austríaco do III Reich.
A insensatez se expande sem cerimônias, deixando perplexas as pessoas de bom senso e fazendo soar o aviso de alerta de que é preciso pensar, antes de mais nada, na sobrevivência da humanidade. Nem sei, aliás, se a merecemos. E não estou sendo negativista. Mas é que se afasta de mim a esperança quando vejo doze pessoas serem assassinadas somente porque, por via do humor, tiveram a suprema ousadia de satirizar um profeta. Onde estamos e para onde iremos? Maomé, por certo, não endossaria a estupidez, tal como Cristo teria apagado as fogueiras inquisitoriais.
Resta sonhar com um mundo sem idiotas. Não importa que a idiotice se apresente como fundamentalista ou racista, como religiosa ou política. Não deixará de ser idiotice qualquer que seja a máscara usada. O que interessa é bani-la, sufocá-la até que ela sucumba nos estertores de sua própria origem espúria. Talvez aí possamos merecer a vida e lutar por ela. Sumam, idiotas de todo o mundo! Sumam e não voltem para que a Humanidade se possa sentir digna desse nome.
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