Conversa de amigos

“O Brasil alcançou a triste marca de 100.000 mortos pela Covid-19”, afirmava um amigo para mim ao telefone, ao mesmo tempo que buscava uma explicação lógica para esse fato. Segundo ele, o editorial da Folha de São Paulo (08/08/20) colocava a culpa das mortes explicitamente em Jair Bolsonaro, exatamente pela forma irresponsável que ele ”toca” a Administração governamental, e que, ao invés de liderar uma ação nacional de combate à doença, passou a “receitar” cloroquina, divulgar falsas terapias e causar aglomerações de pessoas, contrariando o que dizem os especialistas da área de saúde.

Argumentei que um ponto relevante e bastante interessante desse triste cenário, é que esse número cada vez maior de óbitos revela um tipo de comportamento eleitoral bastante anormal, pois, segundo as últimas pesquisas sobre o Presidente da República, as mortes não diminuíram os seus votantes, ao reverso, aumentaram os seus eleitores, o que demandaria um estudo de cunho sociológico para entender esse fenômeno tupiniquim.

Para o meu amigo, a teoria da sociedade liquida de Zygmunt Bauman pode explicar muito bem o mundo atual, no sentido de que as relações sociais estão a cada dia tornando-se mais superficiais e o contato entre os indivíduos, cada vez menor. Explicava o meu interlocutor que o visgo social está se dilacerando, e ao ir se arrebentando faz diminuir o respeito de uma pessoa pela outra, dessa forma, a consequência seria a objetificação do outro, a sua transformação em uma mercadoria descartável. Assim, em uma sociedade de consumo exacerbado, os valores sociais tornam-se cada vez mais voláteis. De fato, disse a ele, e falei que Umberto Eco ensina que: “quando o outro entra em cena, nasce a ética”. Nesse momento, o questionei se seria possível que o senhor Presidente da República representasse um standard do mais puro individualismo, o que o tornaria um projetil mortal a qualquer tipo comportamento ético. Não se falou muito nisso, deixando ao sabor da história a resposta.

Abordamos outros temas, e, entre eles, veio logo à tona o Congresso Nacional. Questionávamos qual o seu real papel numa democracia fragilizada como a brasileira, mas não a partir de um ponto de vista do idealismo legal, onde tudo funciona muito bem. Sondávamos a realidade mesma, buscando fazer uma leitura a partir de como se reparte o poder dentro da Casa legislativa, sondando as ações dos grupos que ali se formam e suas variadas formas infrademocráticas de agir. Concordamos que é paradigmático o papel do Centrão nas estratégias do Executivo, sobressaindo a ideia de que ele (o Centrão) vem sempre desempenhando em praticamente todos os governos um papel de coringa, transmudando os seus valores conforme as demandas. Disse ao amigo que a figura do coringa retrata a morte, e nesse contexto a da ética e da democracia. Assim, arrematei: no contrabalançar dos freios e contrapesos dos poderes constitucionais, o Legislativo vivencia um papel secundário, vivendo quase sempre a reboque do Executivo.

O Judiciário foi outro ponto importante da nossa conversa. Os argumentos circunscreveram os discursos e práticas do STF, que nos últimos tempos vem tomando ares de um legislador positivo, buscando preencher um vácuo de poder que a cada dia se dilata mais. Observamos que esse heroico protagonismo judicial é um abandono completo do princípio da inércia. Também comentamos os novos enfrentamentos às suas decisões por grupos mais extremados, fato que o faz se fechar em concha quando é atacado, procurando defender-se, muitas vezes, com ações que contratam com suas próprias decisões e não raras vezes ao arrepio de princípios constitucionais. Talvez, disse o amigo, dos três Poderes, o Judiciário seja o maior representante de uma sociedade patriarcal, embora com lampejos de modernização. A conclusão foi que a própria forma de interpretação constitucional, reflete, sem saber, a liquidez da sociedade.

Por último, falamos sobre o impacto da Covid-19 e o enorme número de mortes. Qual seria o aprendizado do presidente da República, governadores e prefeitos, e, é claro, da população. Será que aprendemos algo com o enfrentamento desse vírus? A nossa experiência vai servir para enfrentarmos de forma melhor outras situações similares? Ficamos ambos no vácuo. Então, lembrei um ensinamento de Confúcio, que diz: “há três métodos para ganhar sabedoria: primeiro, por reflexão, que é o mais nobre; segundo, por imitação, que é o mais fácil; e terceiro, por experiência, que é o mais amargo.”

*O autor é sociólogo, analista político e advogado