15 de novembro de 1979

Por Ronaldo Derzy Amazonas*

Há datas que teimam em não apagar da nossa memória sejam elas boas ou más, exultantes ou tristes, alvissareiras ou tenebrosas.
O dia 15 de novembro de 1979 é pois, para mim, uma dessas datas que carregam um misto de muita tristeza porém, de render graças ao Criador, por ter me permitido ainda estar entre os vivos e alcançar, quarenta anos depois, tantas e tantas vitórias mesmo em meio a muitas crises, doenças, dores, sofrimentos e perdas.

Na tarde do dia 14 de novembro de 1979 eu, então membro integrante e atuante da equipe de coordenação da Pastoral da Juventude da Arquidiocese de Manaus na radiante transição para a idade adulta e cursando o primeiro ano de faculdade, rumava em uma Kombi pela recém inaugurada Br 319 para a cidade de Porto Velho. Na comitiva, a fim de cumprirmos uma missão de treinamento e troca de experiências com a juventude da capital rondoniense, estavam também o  Padre Renato Barth , o então seminarista e hoje Monsenhor Sabino e os jovens Agostinho, Conceição Rosa, Edileuza e o nosso inesquecível Zecão.

Uma equipe de jovens empolgados e absolutamente conscientes da sua missão pastoral sob uma direção espiritual comprometida do Padre Renato com a ajuda do seminarista Sabino, com um plano de ação traçado na medida das necessidades dos nossos irmãos jovens de outra cidade, todos embarcamos em um carro recém adquirido pela Arquidiocese e doado para a PJ para percorremos mais de oitocentos quilômetros de estrada sob as bênçãos de Deus e o olhar atento de Nossa Senhora como guia da nossa viagem/missão.

Naquela época, a estrada era uma desconhecida para a maioria da população e especialmente da equipe embora eu, um ano antes, tivesse percorrido de ônibus, seu asfalto por duas ocasiões, mas, missão é missão ainda mais quando o objetivo era atrairmos e capacitarmos a juventude portovelhense para os desafios especialmente voltados à implantação das Comunidades Eclesiais de Base as quais pipocavam em Manaus no calor do surgimento da Teologia da Libertação no seio da Igreja Católica brasileira.

Pegamos a balsa no porto da antiga CEASA por volta das 18:00 e alcançamos o Careiro lá pelas 19:30; jantamos num restaurante de beira de estrada e iniciamos a viagem, antes porém, fizemos uma oração em equipe para que tudo transcorresse na mais perfeita ordem.

Dirigi os primeiros trezentos quilômetros e, lá pela meia noite, já do dia seguinte, 15 de novembro, estando todos um pouco cansados, paramos cerca de uma hora para um lanche, esticada de pernas e, na retomada da longa viagem, passei o volante para nosso irmão Zecão.

No banco da frente do veículo além do Zecão como motorista, vinha o Sabino; nos bancos de trás (um deles invertido para que uns ficassem de frente para os outros), os demais cinco membros da equipe. Estrada absolutamente escura, praticamente sem curvas, alguns trechos em obras, muitas balsas no trajeto o que nos permitia acordar, descer e espreguiçar, assim seguimos.

Por volta das quatro da manhã, o forte barulho causado pelo choque com alguma coisa, muitos gritos, pessoas e malas umas por cima das outras numa escuridão total que não nos permitia saber o que tinha acontecido e sequer onde estávamos.

Eu apenas sentia tontura e dor na face e o sangue não me permitia enxergar muita coisa, pois, diante do choque, fomos compelidos uns contra os outros frontalmente e, a cabeça de quem estava na minha frente no banco oposto, causou-me um afundamento no malar.

Alguém me retirou de dentro do veículo e me sentou numa tora de madeira que se encontrava ali no chão do lugar e me disse:- Fica aí sentado que vamos ajudar os outros a sair do carro.

Enquanto meus amigos eram retirados um a um do veículo, algo porém me chamava atenção: um forte cheiro de querosene e uma substância negra e grudenta nas nossas roupas e pele que mais tarde viemos a saber do que se tratava: era piche ou breu de asfalto que derramara dos tonéis que estavam empilhados na beira da estrada, na cabeceira de uma ponte de madeira em manutenção e que foram atingidos em cheio pelo veículo antes de cair numa ribanceira.

Em meio a choros de dor, gritos por socorro, pedidos de calma por quem estava sem muitos ferimentos e em condições de cuidar dos outros, ficamos aguardando por ajuda de quem passasse na estrada até que, ainda na escura madrugada daquele dia 15 de novembro de 1979, um ônibus percorrendo o trajeto Porto Velho-Manaus parou para nos acudir. A Providência Divina estava a nosso favor!

Um a um fomos colocados dentro do ônibus sob os olhares assustados dos passageiros; fomos acomodados nos assentos ainda disponíveis ficando eu e Zecão lado a lado numa das fileiras de poltronas; Edileuza, que mais sofria e reclamava de dores, foi acomodada no chão do ônibus pois ela havia quebrado a bacia; Padre Renato, Conceição e Agostinho apenas com escoriações e pequenos cortes, cuidavam dos demais feridos.

Uma roupa de alguém me foi colocada no rosto que doía muito e sangrava bastante; dores abdominais fortes não me permitiam me mexer o que mais tarde vim a saber que essa imobilidade pode ter salvado minha vida impedindo o sangramento interno. Segurei na mão do Zecão e tentava acalmá-lo mas ele apenas gemia sem muita reação. Lá pelas tantas apenas ouvi e senti dele um suspiro forte; ele sangrava pelo nariz, estava com um dos braços quebrados. Nessa hora chamei alguém que não lembro quem era e dei a infausta notícia: o Zecão morreu. Tiraram o corpo dele do meu lado e o puseram no chão do ônibus onde já estava a Edileuza que nessa altura estava mais calma porém ainda gemendo de dor.

Foi uma madrugada tenebrosa para todos nós!

Depois de mais de três horas de viagem de volta, lá pelas 07:00 da manhã do mesmo dia 15 de novembro de 1979, finalmente, alcançamos a balsa do Careiro porém, uma triste constatação: a balsa acabara de partir e uma outra chegaria somente às 09:00.

Lamentos, incertezas e até certo desespero tomaram conta de todos mas eis que Deus coloca um dos seus anjos a serviço dos seus e aparece um cidadão oferecendo um motor tipo voadeira para nos transportar até o porto da CEASA.

Precauções tomadas para não machucar mais ainda quem já sofria com terríveis dores, fomos eu e Edileuza cuidadosamente colocados no pequeno barco e em nossa companhia o Sabino e o Agostinho. O corpo do nosso irmão Zecão seguiria depois com os demais de balsa.

Chegamos do outro lado e duas ambulâncias já nos aguardavam e fomos levados para o então Pronto Socorro dos Acidentados na Av Joaquim Nabuco onde hoje está fincada a SAMEL.

Exames de praxe realizados constataram em mim uma grave hemorragia interna e fui imediatamente operado e, juntamente com a Edileuza, fomos dias depois, transferidos para uma clínica no bairro da Cachoeirinha onde semanas mais tarde fui submetido a outra cirurgia corretiva no rosto por causa de um afundamento no osso malar.

No meu íntimo, além da fragilidade na saúde, preocupava-me a terrível sensação de perder o período da faculdade. Pedi então a um colega de curso que falasse com os professores de cujas disciplinas haveria provas naquele semestre para que as mesmas fossem aplicadas no próprio hospital. E assim foi feito e, das três provas da faculdade às quais fui submetido para não perder o ano, fui reprovado em apenas uma. Vida que seguiu!

Mais de mês depois tivemos alta e o restante da recuperação foi em casa junto aos familiares e amigos.
Fiquei com algumas sequelas físicas desse acidente (inclusive me submeti a duas outras cirurgias)da mesma forma que a Edileuza. Nunca murmuramos, não desistimos da jornada, continuei firme a serviço da Pastoral da Juventude desta feita na minha Paróquia de Santa Rita na Cachoeirinha.

Mantive a fé inabalável como até hoje, formei, passei em concursos públicos, casei, constituí família, tive filhos, sou avô, alcancei o topo da minha carreira de servidor, sirvo como cristão católico na Pastoral da Saúde da minha atual Paróquia de Nazaré e, por tudo isso, sou eternamente grato ao Pai Criador por ter me poupado a vida para e, por meio desse artigo, glorificar, adorar e exaltar o Seu nome pelas maravilhas que fez e faz até hoje na minha vida.

Da mesma forma Ele está presente na vida dos demais irmãos que estavam nessa missão e, apesar de nos encontrarmos distantes uns dos outros, sei que todos perseveram na fé e tocam suas vidas cumprindo aquilo que Deus reservou para cada um enquanto cristãos comprometidos.

Ao nosso amado e saudoso Zecão a eterna lembrança de uma presença serena, mansa e perseverante com as coisas da Igreja e de Deus que o acolheu com certeza na Santa Morada por tudo o que ele fez pela juventude da nossa cidade até sofrer esse terrível acidente e nos deixar definitivamente.

Obrigado Deus por estar aqui e escrever esse texto quarenta anos depois.

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