Natal: o sagrado domesticado pelo consumo

Uma árvore de plástico verde desbotada de tamanho médio com poucas bolas de vidro bem fino e um pisca-pisca fraquinho. Em volta da árvore uns cordões de plástico verde fino parecendo uma “centopéia em plumas”. Embaixo pequenas caixas embrulhadas com papel de presente. Jantar especial na noite do dia 24 e almoço de RO (restos de ontem) no dia 25. Missa do Galo às 20h. Época de comer bolo e refrigerante fora dos aniversários e de acordar com presentes debaixo da rede de dormir (utensílio doméstico feito com pano forte suspenso por alças fortes entre dois pontos). Essas são minhas lembranças dos meus primeiros natais.

Outra boa memória são os filmes de natal da sessão da tarde, na Globo. Um que eu amo é “O Milagre da Rua 34” (1994), direção de Les Mayfield. O enredo conta a história de Susan, uma garotinha muito inteligente e esperta, que em plena época de Natal, passa a duvidar da existência de Papai Noel. Um dia, um senhor muito bondoso é contratado como Papai Noel na loja de brinquedos em que sua mãe trabalha. Porém o que ninguém podia esperar é que o velhinho passa a afirmar ser o verdadeiro Papai Noel que está ali justamente para provar para a garotinha e para muitas pessoas que ele é real. O final é sensacional, também em termos de lógica jurídica, já que o Papai Noel acaba levado ao tribunal. Já conto o final. Sim vou dar “spoiler” (rs).

O 25 de dezembro não começou como festa cristã. Nos primeiros séculos (I e II), os seguidores de Jesus não comemoravam seu nascimento, mas sua morte e ressurreição. A data surge quando a Igreja (já dominada pelo Império Romano, de dentro pra fora) decide criar uma celebração que dialogasse com as tradições pagãs do solstício de inverno, especialmente as festas romanas de Saturnália e o culto oriental ao Sol Invicto — rituais já populares entre o povo.

Em vez de proibir essas celebrações, o cristianismo as ressignificou: onde antes celebrava-se o retorno da luz do sol, passou-se a celebrar o nascimento de Cristo como “luz do mundo”. Santo Agostinho sintetiza o sentido simbólico dessa apropriação:

“Ele é o dia verdadeiro que o sol visível apenas figura.”

O Natal é, desde o início, uma criação cultural estratégica, misturando fé, política e adaptação popular para unificar comunidades e fortalecer a identidade cristã.

Já o Natal comercial é um mito moderno, criado pelo comércio e pelo marketing. A imagem que conhecemos hoje — Papai Noel, árvore verde, presentes — é fruto de um processo muito mais recente, especialmente dos séculos XIX e XX.

Papai Noel nasce da fusão de São Nicolau (um bispo do século IV conhecido por sua generosidade) com tradições nórdicas e anglo-saxãs. A figura do “bom velhinho” ganha forma moderna com a cultura americana, especialmente pelos desenhos da Coca-Cola nos anos 1930, que consolidam visual e personalidade.

            A árvore de Natal vem de tradições germânicas pré-cristãs que celebravam a vida no inverno com um símbolo verde. O cristianismo adota a árvore e, no século XIX, com o romantismo europeu, ela vira moda burguesa — um ritual familiar.

            Os presentes representam a caridade cristã, mas tornam-se prática de consumo com a expansão do capitalismo urbano, vitrines, catálogos e publicidade no fim do século XIX.

O Natal comercial nasce quando a celebração deixa de ser litúrgica e se torna doméstica, íntima, visual — ideal para mercantilização do afeto. O espírito natalino passa a ser medido por objetos. O Natal nasceu como invenção política antes de ser rito espiritual. Hannah Arendt – (A Condição Humana), lembraria que o poder não nasce da força, mas da capacidade de criar mundos comuns:

“O poder surge onde as pessoas se reúnem e se afirmam em conjunto.”

O Natal foi a criação deste “em conjunto”: uma história que unificou povos ao redor de uma narrativa emocional simples — o nascimento da esperança. Mas o que era mito estratégico tornou-se mercadoria afetiva. A modernidade privatizou o Natal dentro de casa: árvore, presentes, cartões. Zygmunt Bauman – (Vida para Consumo),diria que a liquidez do capitalismo transformou valores em embalagens:

“O consumo promete liberdade, mas nos prende à busca infinita por pertencimento.”

A figura de São Nicolau vira mascote industrial e assume o rosto de um velho sorridente — não um bispo, mas um logotipo. A caridade vira transação. Em vez de dar porque o outro precisa, dá-se porque o outro existe como extensão da nossa imagem. O presente se tornou selfie emocional: o outro serve para que eu seja visto como generoso.

Assim, no século XXI o Natal não é mais rito religioso, nem apenas festa comercial — é espetáculo social. E aqui Guy Debord – (A Sociedade do Espetáculo), acerta em cheio:

“Tudo o que era diretamente vivido tornou-se representação.”

A ceia não é refeição — é cenário. A árvore não é vegetal — é totem de pertencimento. A família não é encontro — é performance de harmonia para o feed. Os conflitos são escondidos atrás da luz amarela da decoração. A pobreza afetiva é enfeitada com frases genéricas. A tristeza é maquiada em filtros de “gratidão”. O Natal é a semana de mentira consensual que coloca verniz emocional sobre estruturas que o resto do ano fracassam.

Byung-Chul Han – (A Sociedade do Cansaço, A Agonia do Eros.) vai além: o Natal é a data máxima da “positividade compulsória”:

“A sociedade do desempenho transforma cada pessoa em seu próprio espetáculo.”

A alegria deixa de ser sentimento e vira obrigação. Quem não posta é infeliz; quem posta mal é fracassado. A criança no colo do Papai Noel é uma prova social, não afeto. A mesa é uma tese visual sobre sucesso, não comida.

A ironia brutal é que o Natal nasceu para unir a comunidade contra as trevas e hoje produz sombras individuais escondidas sob LED. A promessa original era de libertação; a prática moderna é de competição emocional. “Feliz Natal” não deseja felicidade — cobra conformidade. O sagrado perdeu a disputa, não para o demônio, mas para o marketing.

Voltando ao filme “Milagre da Rua 34”, o advogado numa artimanha final, com a ajuda da pequena Susan, entrega uma nota de um dólar ao juiz (indeciso sobre seu veredicto). Nela está escrito: “In God we trust” (Em Deus nós confiamos). O Juiz entende a dica e declara que se o Governo dos Estados Unidos pode declarar que confia em Deus, reconhece a Sua Existência. Logo o Estado de Nova Iorque pode declarar que Papai Noel existe. E existe na figura do simpático velhinho que diz ser o verdadeiro Papai Noel. Afinal:

CRER É UMA ESCOLHA!

Talvez o mais polêmico seja admitir que o Natal não foi sequestrado pelo consumo — ele sempre foi uma construção simbólica a serviço do poder. A diferença é que Roma usava mitos para unificar, e nós usamos vitrines para dividir.

O capitalismo não destruiu o sentido do Natal — apenas nos devolveu seu segredo:

O sentido sempre dependeu da história que escolhemos acreditar. A pergunta honesta para um Natal pós-redes não é “o que Jesus faria?”, mas: Sem o espetáculo, ainda restaria alguma luz?

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