“Não existe ideologia que resista a uma mordomia”

Quando entrei na Faculdade de Comunicação na Ufam, em 1988, por causa da minha atuação nos movimentos da Igreja Católica em Parintins,  já tinha algum conhecimento sobre as ideologias progressistas como a Teologia da Libertação (da qual o teólogo Leonardo Boff é defensor e expoente na América Latina) e as CEBs (comunidades eclesiais de base). Aliás, membros das CEBs no ABC paulista estão entre os fundadores do PT (partido dos trabalhadores). Até fizemos uma vez o Padre Francisco Lupino, da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, descer do altar na hora da homilia e perguntar aos presentes o que eles haviam compreendido da leitura do evangelho. Isso aconteceu uma única vez. Para surpresa de muita gente. Minha também, porque o padre aceitou nossa proposta.

            No segundo ano no ICHL – Instituto de Ciências Humanas e Letras – onde fica o curso de jornalismo, vivi duas experiências bem distintas e antagônicas da minha vida acadêmica, ligadas a questões ideológicas. A primeira envolveu a professora Conceição Derzi, que lecionou a matéria Realidade Regional da Comunicação. Esta professora na primeira conversa com a turma, textualmente disse: “Estou aqui para moldar, preparar vocês para a sociedade” (rs). Na aula seguinte, ela se deparou com um artigo que eu escrevi e colei ao lado da lousa. Basicamente eu dizia que não era um produto de uma esteira do pólo industrial de Manaus para ser “moldado”, preparado, ajustado… Finalizei escrevendo que estava numa Universidade (pensamento universal) e que adotaria este ou aquele conhecimento de acordo com meus princípios e crenças (rs). Claro que ganhei a antipatia da professora o semestre inteiro.

            O segundo momento veio próximo à eleição daquele ano, 1989. Lula era candidato e esperança de dias melhores para os mais pobres do país. Fomos “convidados” a assistir, no auditório do ICHL, uma palestra do senador gaúcho José Paulo Bisol (PSB), vice na chapa do PT. Não conhecíamos o senador. A platéia de início um pouco frustrada pensava: – Vamos ouvir o candidato a vice? Surpresa total. Bisol tinha uma oratória contagiante. Com meia hora de discurso já viramos petistas com bandeirinha na mão (rs). Naquele ano votei e consegui muitos votos  no Lula para desgosto do meu pai. Sábio o Sr. Warly Bentes Pontes, hoje eu sei.

            Dois momentos ímpares. No primeiro rejeitei a doutrinação de esquerda que hoje domina as universidades públicas. E estava tudo bem discordar dos militantes vermelhos naquela época. Ninguém era espancado ou rotulado de “fascista” (um absurdo de ignorância sobre o que é realmente o fascismo) como infelizmente acontece hoje em grandes universidades públicas do país. No segundo momento, abracei e lutei para implantar essa mesma ideologia que já matou dezenas de milhões de pessoas no mundo e que só gera riqueza (na maioria das vezes advinda de corrupção) para os privilegiados da cúpula de poder. Fato que expressa a frase: NÃO EXISTE IDEOLOGIA QUE RESISTA A UMA MORDOMIA. Uma CONSTATAÇÃO HISTÓRICA E ATUAL.

            Ouvi essa frase pela primeira vez de uma querida amiga, a professora parintinense Fátima Guedes, a Tia Fá, de quem sou Fã (rs). Tia Fá tem uma história pessoal e profissional linda, de muitas lutas e conquistas, a quem presto minha homenagem por ser uma vencedora e uma CONTESTADORA NATA. Maria de Fátima Guedes Araújo,  é cabocla das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ com especialização em estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. É uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras: Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário Falares Caboclos.

            Assim com a ajuda de professores, amigos, pensadores e experiência de vida hoje posso tentar compreender (sim “tentar” porque nada é absoluto e verdadeiro, só Deus) a importância da IDEOLOGIA e da FILOSOFIA para a Humanidade. Uma tentando MUDAR o mundo. A outra tentando DECIFRAR o mundo.

A frase – “Não existe ideologia que resista a uma mordomia” – provoca porque desmonta a imagem de que nossas convicções são puras, imunes ao interesse pessoal. Ela sugere que aquilo que chamamos de “ideia” muitas vezes é apenas forma simbólica do desejo — e o desejo muda quando a vida muda.

A ideologia se apresenta como verdade absoluta, mas nasce das condições concretas da vida. Karl Marx afirma que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx & Engels, A Ideologia Alemã). Quando a vida melhora — a “mordomia” — a consciência muda junto.

A filosofia, ao contrário, começa pela suspensão do óbvio. Ela não promete conforto, promete lucidez. É o gesto que Arendt descreve como o pensar que “interrompe e suspende o curso automático das coisas” (A Vida do Espírito). Ideologia fecha, filosofia abre.

Por isso, a mordomia funciona como um ensaio de verdade: quando o interesse deixa de ser abstrato e se torna real, as ideias revelam sua origem. Nietzsche foi direto: a moral muitas vezes é apenas a “expressão do ressentimento dos que não podem agir” (Genealogia da Moral). Quando podem, mudam. Essa mudança não é hipocrisia individual — é mecânica social. Foucault mostra como o poder não opera através de ideias elevadas, mas de práticas, incentivos e dispositivos. Ele escreve: “o poder passa pelas coisas minúsculas” (Microfísica do Poder). A mordomia é um desses dispositivos.

Byung-Chul Han observa que a sociedade contemporânea não opera pelo medo e pela repressão, mas pelo excesso de positividade e conforto: “o poder hoje se exerce pela sedução, não pela proibição” (Sociedade da Transparência). Nesse horizonte, a ideologia rígida perde força, porque o prazer sempre negocia com os princípios.

Assim, a frase inicial pode ser lida como diagnóstico: quando o mundo nos recompensa, os discursos de pureza desaparecem. Aquilo que parecia convicção era, na verdade, reivindicação — e a reivindicação termina com o privilégio.

Quase todas as revoluções começam com ideais radicais e terminam com conservação do poder:

            •          Bolcheviques (1917): igualdade absoluta → Estado centralizado e privilégios da nomenclatura.

            •          Revolução Francesa (1789): fim dos privilégios → Império napoleônico.

            •          Revolução Americana (1776): liberdade e igualdade → manutenção da escravidão e depois da segregaçã0 racial.

Quando os revolucionários ganham o poder, a ideologia da igualdade cede à mordomia do poder.

Há ainda inúmeros casos de pensadores que mudam radicalmente ao alcançar posições que antes criticavam:

            •          ex-revolucionários que se tornam ministros;

            •          críticos do capitalismo que viram consultores;

            •          líderes populares que passam a viver com regalias do Estado (lembram de alguém? rs). A história política latino-americana é rica em exemplos — de todos os espectros.

Quando indivíduos ascendem economicamente, frequentemente mudam de ideologia:

            •          defesa da redistribuição → meritocracia.

            •          crítica ao Estado → proteção do patrimônio.

            •          oposição ao privilégio → normalização do acesso exclusivo.

A mordomia cria uma nova narrativa moral para justificar a mudança.

Conclusão histórica: A ideologia costuma ser o discurso da situação, não sua causa. Quando a situação muda, o discurso muda.

Hoje, nas redes, isso é evidente: influencers começam militando pela justiça social até que o patrocínio chegue. A luta contra o sistema vira publicidade do próprio sistema. O cancelamento funciona como moral instantânea: o que ontem era valor, hoje vira vício, dependendo de quem ganhou seguidor, emprego e contrato. As causas são flexíveis — os benefícios não.

Isso nos obriga a perguntar: Quantas ideologias são apenas a forma teórica das frustrações? E, inversamente, quantas “mudanças de posição” são só o efeito do conforto? A filosofia nos oferece um antídoto: pensar apesar dos ganhos, apesar das facilidades. Uma ideia só é ideia quando resiste à mordomia.

No fundo, a frase “não existe ideologia que resista a uma mordomia” nos obriga a olhar para dentro: nossas convicções são princípios… ou apenas o discurso que usamos enquanto não temos o privilégio de escolher? E se a pergunta mais honesta não fosse “qual é a sua ideologia?”, mas: o que do que você acredita continuaria existindo se amanhã tudo desse certo na sua vida?

A ideologia cai quando a vida sobe. O princípio só é princípio quando resiste ao conforto. E você, leitor? Mudaria seus valores e princípios em troca de muito dinheiro?

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