Enfermagem agredida, outubro desbotado

Por Ronaldo Derzy Amazonas*

Não poderia vir em pior hora uma temerária decisão judicial proibitiva em desfavor das atribuições dos profissionais da enfermagem alcançados que foram em pleno andamento do Outubro Rosa, uma campanha de cunho internacional que visa conscientizar a população feminina, mas também a sociedade em geral, sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama.

A pretexto de estabelecer limites e impor condicionalidades à atuação da Enfermagem especialmente no âmbito do SUS, o Conselho Federal de Medicina recorreu à Justiça Federal e esta, em medida liminar, revogou parte de uma portaria do Ministério da Saúde a qual estabelecia as prerrogativas e atribuições dos profissionais da Enfermagem notadamente no âmbito de programas específicos de saúde relacionados à Atenção Básica principalmente as executadas pelas equipes da Estratégia Saúde da Família  tais como Hipertensão e Diabetes, Tuberculose, Hanseníase, DST, Saúde da Mulher, entre outros, impedindo os profissionais da Enfermagem de, por exemplo, solicitarem exames complementares o que, numa visão mais ampliada, impede o exercício profissional em atividades definidas em protocolos estabelecidos pelo próprio Ministério da Saúde.

Prevaleceu o corporativismo, imperou o legalismo, sobrou  o pedantismo e faltou sobretudo bom senso e humildade a alguns atores envolvidos nessa patacoada, cujos reflexos negativos serão sentidos especialmente pela população usuária  do SUS, vítima maior dessa insensatez desmedida.

Esse movimento chegou a tal ponto de estupidez que alguns profissionais da medicina em postagens e comentários em redes sociais tentam desmerecer e desqualificar a formação e a atuação da Enfermagem, num posicionamento cruel e indigno que  com certeza não espelha  a opinião da categoria e das entidades médicas.

Quem me conhece sabe que atuo profissionalmente numa instituição pública de saúde referência local e nacional em dois programas de saúde básica, DST e Hanseníase, que são retratos fiéis de como um bom e respeitoso entrosamento numa equipe multiprofissional é vital para o desenvolvimento das atividades voltadas para o diagnóstico, tratamento e acompanhamento de pacientes cujas doenças estão enquadrados nesses programas de saúde. Não fosse o entrosamento da equipe, se não imperasse a  nítida compreensão dos limites de cada profissão, se não existisse uma clara noção da importância de cada um para que as atividades fossem executadas, e, se prevalecesse o legalismo e o corporativismo, quem mais sairia perdendo era o usuário do SUS, vítima maior desse descalabro.

Há que se entender, que cada categoria profissional tem as suas competências e atribuições estabelecidas em leis regulamentadoras das profissões, porém, existem também as zonas de atuação conjunta que podem e devem ser executadas de modo harmonioso permitindo com isso, no caso específico das profissões da saúde, que o paciente tenha melhor  e mais rápido acesso ao diagnóstico e tratamento para seus males.

Ao lembrar que a Constituição brasileira determina que a saúde é dever do estado e um direito do cidadão, penso que a decisão liminar ainda que alcance tão somente parte da portaria ministerial, fere de morte o acesso mais rápido e seguro do usuário ao diagnóstico e ao tratamento de uma leva de doenças(diabetes, hipertensão, tuberculose, Hanseníase, câncer de colo de útero e de mama, HIV, Sífilis, Hepatites entre outras DST, etc.) permitindo com isso, que novas investidas corporativas sejam adotadas restringindo mais ainda o acesso dos usuários ao tratamento e a possibilidade de cura de suas doenças.

As inúmeras tentativas de submissão de uma categoria por outra sobretudo quando sabemos que não há profissionais médicos e de enfermagem sobrando no mercado, nos leva a imaginar que se a enfermagem adotar ao pé da letra as atribuições legais da profissão, os médicos por outro lado, serão obrigados então a realizar tarefas próprias do seu mister as quais porém muitas vezes se recusam a realizar sobrando mais uma vez para o pobre do paciente esse que não tem nada a ver com essa batalha da insensatez e da falta de humildade.

Ao querer regular o que outros profissionais da saúde  podem ou não fazer especialmente em termos de saúde pública, as entidades médicas devem primeiro doutrinar os seus profissionais a realizarem aquilo que se convenciona denominar de “carne de pescoço” tendo em vista que na prática a  grande maioria dos profissionais da medicina preferem ficar sempre com o “filé”.

Nessa pendenga, onde o que menos prevalece é o bom senso, não se pode perder de vista que o diálogo deve se sobrepor ao corporativismo, a humildade deve se impor ao egoísmo e a saúde do povo deve estar na frente dos interesses menores e subalternos.

Para não transformarmos a saúde num campo de batalha e, para não desbotarmos mais ainda as cores do Setembro Amarelo, do Outubro Rosa e do Novembro Azul, é necessário maior respeito às competências, à formação e sobretudo à vontade de cada profissão de atuar de modo ético, preciso e sem patrulhamentos de parte a parte.

Por fim, penso sinceramente que diante de medidas pontuais porém catastróficas como essa liminar da justiça, está em curso uma orquestração perpetrada pelo ministro da Saúde, segmentos econômicos poderosos, entidades corporativas da saúde e parte da mídia, interessados que estão no desmonte do SUS com a entrega daquilo que pode render bons lucros para profissionais e  empresários ávidos por fatiarem um dos maiores programas de saúde pública do planeta deixando o usuário mais uma vez à mercê do capital  financeiro predador.

Fiquemos de olho!

A saúde agradece.

Té logo!

*O autor é farmacêutico e empresário