Brincadeira sem graça

Essa tal de Morte, além de indesejada, é enxerida. Confiando na certeza de que, mais cedo ou mais tarde, ela se sobreporá ao seu contrário vida, a ridícula e macérrima senhora se dá à pachorra de pregar peças nas suas futuras vítimas. São brincadeiras de aprimorado mau gosto, como seria natural esperar de quem chega sem ser esperado e se impõe sem a menor sensibilidade.

Algo assim aconteceu comigo na semana passada. Estava eu posto em sossego, lendo tranquilamente um livro sobre o julgamento de Tchaikovski e ouvindo Mozart, quando me fui dando conta da aproximação da esquelética figura. Sorrateira e covarde, ela se insinuava por meio de uma dormência que se estendia do queixo aos dois braços e de uma temperatura na pele que lembrava um refrigerador. Era um mal estar insuportável. Já antes eu sentira algo parecido, mas, como os sintomas se esvaíram, não dei importância. Mas dessa vez eles pareciam não ter vindo para brincadeiras. Persistiram, a ponto de já quase eu não conseguir levantar para pedir ajuda.

Inevitável: minha velha companheira pôs-me no carro e lá seguimos rumo ao hospital. A ciência entra em campo e vem o diagnóstico. Eu estava infartando. Que coisa! Inexplicável isso, num velho de oitenta e um anos, que fuma desde os quinze e nunca recusou um copo de cerveja ou uma dose de bom uísque. Só podia mesmo ser uma das brincadeiras sacanas da cretina da Magra.

Pois muito que bem. Pelo menos dessa vez, ela se ferrou: os médicos, enfermeiras e suas equipes conseguiram driblar a malfazeja e. depois de três noites, logrei sair do hospital. Saí mais pesado do que entrei porque adicionaram ao meu modesto coração duas coisas chamadas “stunt” (acho que é assim que se escreve). Segundo me foi explicado, isso serve para manter aberta a artéria, depois de ter sido esta desobstruída, de tal sorte que o sangue possa circular livremente. É, se me permitem trazer o assunto para o meu terreiro, uma espécie de habeas corpus sanguíneo, ao fito de evitar que elementos estranhos venham a aprisionar o líquido. Se essa providência não for cumprida, instala-se o caos: a circulação para e o infeliz mergulha no que Machado chama a “voluptuosidade do nada”.

A cretina chegou perto, mas eu escapei. Para decepção dos espiritualistas, sou obrigado a revelar que não entrei em nada parecido com túnel e, portanto, não me foi dado ver nenhuma luz ao fim do próprio. De concreto e relevante mesmo, nessa experiência desagradável, a humilhação de ter tido que dormir uma noite na UTI, com a perna direita imobilizada e usando fralda. Que coisa pavorosa! Não desejo isso nem para o Bolsonaro.

De resto, é o “pós” que está sendo terrível. Dá para imaginar a quantidade de remédios, as recomendações e as restrições. Não me preocupa a proibição de fazer esforço físico. Para quê, afinal de contas, entregar-me-ia a prática tão desagradável? O pior, muito pior, é a tentativa de me divorciarem definitivamente do meu cachimbo. Isso, sim, é de uma crueldade nazista.

Vamos ver no que dá. Ainda estou de pé e a luta continua. Pelo menos já passou o auge da preocupação que tomou conta de filhos e netos.